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BOMBA DE INSULINA X TRATAMENTO TERAPÊUTICO NOS AMBIENTES NATURAIS DA PESSOA AUTISTA





Priscila Boaventura Soares Vieira


Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça que obrigou a cobertura de bomba de insulina a paciente com diabetes tipo 1 por plano de saúde traz fundamentos que podem tornar possível concessão da cobertura da terapia comportamental para pessoas autistas em ambientes naturais como casa e escola.

No final do ano passado, ao palestrar no 3º Congresso do Fórum Nacional do Poder Judiciário, evento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), comparou o tratamento em ambientes naturais fundamentado na ciência da Análise do Comportamento Aplicada - ABA para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) a um “passeio na floresta”. Dessa fala tão carregada de estigmas sociais, proferida por integrante da instância máxima da Justiça no âmbito infraconstitucional, extrai-se que boa parte do Poder Judiciário ainda ignora totalmente a realidade de pessoas que estão no espectro autista e suas famílias.

Assim, torna-se importante abordar uma das principais controvérsias relativas ao tratamento terapêutico de pessoas autistas: a recusa da cobertura contratual pelos planos e seguros de saúde para a terapia ABA em ambientes naturais, como escolas e residências. Essa negativa tem sido sustentada por uma interpretação restritiva dos contratos e do rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), sem considerar a necessidade clínica e o respaldo legal e científico desse tratamento.


De início, é preciso entender que o §1º do artigo 1º, da Lei nº 12.764/2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista, considera autista a pessoa que possui deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação verbal e não verbal e da interação sociais, bem como padrões restritivos e repetitivos de comportamento. E, embora, todas as pessoas com TEA partilhem essas dificuldades, alguns poderão ter dificuldades de aprendizagem em diversos estágios da vida, desde frequentar escolas por falta de adaptações necessárias, até aprender atividades da vida diária, como, por exemplo, tomar banho ou preparar a própria refeição.


Outros poderão levar uma vida relativamente "normal", enquanto alguns poderão precisar de apoio especializado ao longo de toda a vida. Além disso, a norma supracitada atribui um amparo jurídico diferenciado às pessoas autistas ao equipará-las a pessoas com deficiência, para todos os efeitos legais.


Segundo a comunidade médica, a pessoa autista sofre de um distúrbio incurável, mas os sintomas podem ser substancialmente reduzidos caso recebam o tratamento adequado o mais cedo possível, proporcionando-lhe condições de conduzir a vida de forma mais próxima da normalidade. Tanto é assim que a Lei nº 12.764/2012 estabelece como diretriz da política nacional de proteção das pessoas autistas a atenção integral às necessidades de saúde dessas pessoas, com vistas ao diagnóstico precoce, o atendimento multiprofissional e o acesso a medicamentos e nutrientes (artigo 2º, III). Nessa mesma lei, reconhece-se o atendimento multiprofissional como direito das pessoas autistas, bem como o acesso a ações e serviços de saúde com o objetivo de dar atenção integral às suas necessidades de saúde (artigo 3º, III, b).


A terapia conhecida pela sigla ABA, decorrente da expressão Applied Behavior Analysis é uma abordagem cientificamente validada para o tratamento de pessoas com TEA. Decorre da própria natureza dessa intervenção a necessidade de que ela ocorra em diversos ambientes, não se limitando ao consultório clínico, devido à necessidade de generalização dos comportamentos e habilidades aprendidos[1].

O fato de a terapia ser realizada fora do ambiente clínico, como na escola ou no domicílio, não descaracteriza a prática como um tratamento de saúde. Pelo contrário, a ciência comportamental evidencia que o ambiente onde a pessoa interage cotidianamente é um dos fatores essenciais para o sucesso do tratamento. De acordo com a literatura especializada, uma característica central da ABA é a generalização de habilidades para diferentes contextos, algo que só pode ser plenamente alcançado quando o tratamento é realizado nos ambientes em que a pessoa vivencia situações reais[2].


O ambiente clínico, por mais controlado e estruturado que seja, não reflete a complexidade das interações sociais e dos desafios diários enfrentados pela criança, especialmente aquelas diagnosticadas com TEA.  Ademais, os manuais de diretrizes práticas de ABA, amplamente reconhecidos por associações internacionais, como a Behavior Analyst Certification Board (BACB), reforçam que a intervenção em ambientes naturais é uma prática necessária, especialmente quando se busca o desenvolvimento de habilidades sociais e acadêmicas[3].


Assim, a execução do tratamento fora do consultório não representa uma desvirtuação da prática terapêutica, mas sim uma adaptação necessária para que o tratamento cumpra sua finalidade.

Os planos de saúde são responsáveis pelo acesso de beneficiários à saúde suplementar no país, e, por isso, regulados pela Lei nº 9.656/1998 e fiscalizados pela ANS. Os contratos firmados entre as operadoras e os beneficiários possuem natureza de adesão, sendo assim elaborados unilateralmente pela fornecedora dos serviços de saúde, cabendo tão somente ao consumidor aceitar ou não.


Essa estrutura contratual, que não possibilita uma negociação individualizada, exige uma proteção especial do consumidor, como a aplicação dos dispositivos do princípio da boa-fé objetiva e do rigoroso controle de cláusulas abusivas para se evitar desequilíbrios que possam comprometer a efetiva prestação do serviço de saúde contratado. Por esse motivo, a jurisprudência é pacífica quanto ao fato de que cláusula que exclui tratamento médico sob a justificativa de ausência contratual ou não previsão no rol da ANS deve ser considerada nula e que os procedimentos devem ser custeados pelo plano de saúde.


Ocorre que, contrariando o que se consignou acima, tem predominado nos tribunais, principalmente em virtude de sucessivas decisões do STJ no mesmo sentido, a tese de que só há obrigatoriedade de cobertura pelos planos e seguros de saúde das terapias multidisciplinares realizadas em ambiente clínico. Para a necessidade de reabilitação nos ambientes em que a pessoa autista frequenta diariamente, prescrita por médicos assistentes especialistas no TEA com o objetivo de trazer desenvolvimento e qualidade de vida para o paciente hipervulnerável, a Justiça tem colocado cláusulas restritivas estabelecidas unilateralmente pelas operadoras acima da dignidade do beneficiário.


Na decisão proferida no bojo dos autos referentes ao Recurso Especial nº 2.064.964/SP, a 3ª Turma do STJ assentou que a terapia realizada no ambiente doméstico ou escolar só deverá ser coberta pelo plano ou seguro de saúde de houver expressa previsão contratual. Tal posicionamento contraria a o §4º, III, do artigo 18, da Lei Brasileira de Inclusão, que assegura atendimento domiciliar multidisciplinar nas ações e serviços de saúde destinados à pessoa com deficiência. A negativa de cobertura do direito de reabilitação e do desenvolvimento adequado da pessoa autista nos ambientes necessários, além de afrontar os mais diversos princípios e direitos fundamentais, prioriza a conveniência das operadoras de planos e seguros de saúde em detrimento da efetividade do tratamento.


Contudo, no dia 12 de novembro de 2024, a mesma 3ª Turma do STJ, no julgamento do REsp nº 2.130.518, por unanimidade, decidiu que o plano de saúde está obrigado a custear bomba de insulina para beneficiário com diabetes tipo 1. Consignou-se expressamente que o rol da ANS é apenas uma referência básica e não um limite absoluto para a cobertura de tratamentos; que as cláusulas contratuais que excluem tratamentos essenciais são abusivas e violam o direito à saúde; e que a decisão do médico assistente e a comprovação científica da eficácia do tratamento devem prevalecer sobre interpretações restritivas dos planos de saúde.


A partir desse julgamento, é possível traçar um paralelo entre o que foi decidido no citado acórdão e o direito fundamental à terapia comportamental nos ambientes naturais da pessoa autista que dela precisa, como segue:


a)    Quanto ao quadro de saúde dos beneficiários: criança com Diabetes Tipo 1, que não respondeu ao tratamento convencional X criança autista que não obtém autonomia onde vive pois não generaliza o que é ensinado somente em ambiente clínico.


b)    Quanto aos fatos: negativa de cobertura por considerar a bomba de insulina como órtese não relacionada a tratamento cirúrgico e pelo seu uso não ser ambulatorial ou hospitalar X negativa de cobertura somente pela sua prática não ser realizada em ambulatório, clínica ou hospital.


c)     Quanto à classificação: a bomba de insulina foi classificada pela ANVISA como dispositivo médico ou produto para saúde, e não como medicamento ou órtese X tratamento terapêutico comportamental não é órtese, nem medicamento.


d)    Quanto ao rol da ANS: apesar da bomba de insulina não estar presente no rol da ANS, a decisão do STJ em destaque, deixa registrado que se trata apenas de uma referência básica X terapia ABA está prevista no rol da ANS.   


e)    Quanto aos benefícios clínicos comprovados: decisão considerou estudos apresentados por instituições médicas e científicas que apontam a eficácia da bomba de insulina X ciência ABA, baseada em evidência, considerada “padrão-ouro” no tratamento do TEA, é reconhecida assim também por diversas decisões dos tribunais pátrios.


f)      Quanto à economia que poderá ser gerada com a cobertura dos tratamentos: uma previne internações e complicações mais graves associadas à diabetes x terapia ABA aplicada no ambiente natural do paciente potencializa a autonomia do paciente e previne tratamentos futuros tão intensivos, internações psiquiátricas e dependência permanente de terceiros.


Diante do comparativo acima realizado, resta evidente que o fato da terapia ocorrer na escola ou em casa não altera seu caráter de saúde, assim como o uso da bomba de insulina fora do hospital não descaracteriza seu propósito terapêutico. Se há indicação médica e comprovação científica, a cobertura deve ser garantida.


PRISCILA BOAVENTURA SOARES VIEIRA é advogada especialista em direito de saúde e inclusão social de pessoas neurodivergentes e/ou com deficiência, auditora de controle externo do TCE/SE, mulher com TDAH, mãe atípica e CEO do Escritório Priscila Boaventura Advocacia



REFERÊNCIAS:

[1] LOVAAS, O. I. (1987). Behavioral Treatment and Normal Educational and Intellectual Functioning in Young Autistic Children. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 55(1), 3-9. DOI: [10.1037/0022-006X.55.1.3](https://doi.org/10.1037/0022-006X.55.1.3

[2] COOPER, J. O., HERON, T. E.; HEWARD, W. L. (2020). Applied Behavior Analysis (3rd Edition). Hoboken, NJ: Pearson Education. Disponível em: https://dokumen.pub/qdownload/applied-behavior-analysis-3nbsped-0134752554-9780134752556.html)

[3] Behavior Analyst Certification Board (BACB). Guidelines for Certification of Behavior Analysts. Behavior Analyst Certification Board. Disponível em: [BACB Guidelines](https://www.bacb.com)

 
 
 

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